Alagoana bicampeã de tiro esportivo fala sobre preconceito, incentivo e conquistas - Programa Show de Bola

GOVERNO DE ALAGOAS

GOVERNO DE ALAGOAS

Alagoana bicampeã de tiro esportivo fala sobre preconceito, incentivo e conquistas

Julia Nunes participou do Campeonato Brasileiro e da Copa Brasil, realizados entre 23 e 26 de novembro, no Rio de Janeiro


Julia Nunes é advogada e praticante do tiro esportivo. Ela conheceu o esporte há pouco mais de dois anos, e logo precisou enfrentar obstáculos como os olhares tortos por querer praticar uma modalidade “de menino” e o medo que a família tinha de armas. Mesmo conquistando seu espaço e o título de bicampeã brasileira, Julia ainda precisa encarar o preconceito ligado à palavra ‘atirador’, que é como são conhecidos os praticantes.  

– No início sofri muito com a rejeição do esporte predominantemente masculino e com o medo que minha família tinha das armas. Mas hoje todos entendem o dom que Deus me deu e os meus sacrifícios como atleta. As pessoas falam “você é tão meiguinha, você cozinha tão bem” (risos), mas eu gosto do impacto do recuo da arma, do cheiro de pólvora, do barulho (risos). Mas o preconceito ainda existe e é geral. Quando um bandido com uma arma mata muita gente, o que os noticiários apresentam? "Atirador matou...”. A palavra atirador sempre vem ligada a coisas ruins. A pessoa que se utiliza de uma arma para fazer isso não é atirador, é bandido! – desabafou.

Mas nada disso fez com que a Julia desistisse. A paixão pelo tiro esportivo começou quando ela foi assistir uma competição de ar comprimido.

– Eu comecei indo ver uma competição de ar comprimido. Até me arrisquei, mas atirei muito mal. Mas o presidente do CATO (Clube Alagoano de Tiro Olímpico) me viu atirar e disse que eu levava jeito, que minha estrutura corporal era propícia para o tiro, aí ele me convidou pra conhecer o fogo e estou lá. Sou a mais nova do brasileiro, não de idade, mas de prática. Além disso, normalmente, atiradoras mulheres são filhas ou esposas de atiradores. Eu sou a única na competição sem parentesco com o esporte – explicou.

Dois anos depois, Julia é bicampeã brasileira de tiro esportivo na modalidade carabina calibre menor 50m custon. O primeiro título foi conquistado em 2016. O segundo foi no mês passado, quando a atiradora participou de duas competições no Rio de Janeiro: o Campeonato Brasileiro e a Copa Brasil. Um detalhe importante da conquista é que, no segundo dia de competições, a atleta teve a maior pontuação geral.

– O Campeonato Brasileiro é composto por 10 etapas e atiradores do Brasil todo participam. São mais de mil atiradores. Fui campeã nas modalidades carabina 50m custon, carabina 50m sporter e fui vice-campeã na carabina 25m custon. Nessa modalidade, nosso estado foi classificado como vice-campeão, ou seja, os três melhores atletas formam uma equipe que representa o estado. Eu fui a única mulher a compor equipe no Brasil. Todas as demais equipes foram compostas só por homens. Já a Copa Brasil é uma competição com uma única etapa, que ocorre simultaneamente à final do Brasileiro. Nessa, fui campeã nas modalidades: carabina 50m custon, carabina 50m sporter e fui vice na carabina 25m custon.

Em 2016, quando foi campeã pela primeira vez, a atleta teve que mudar alguns hábitos devido à uma lesão. Mas teve ajuda e conseguiu transformar seus hábitos comuns em práticas de esportistas.

– No Brasileiro de 2016, eu me lesionei. As armas são muito pesadas e eu passava muito tempo na mesma posição. Então, tive que mudar meus hábitos para hábitos de atleta. Tive ajuda médica da dra. Paula Domingues e do preparador físico Vagner Lima, que fez um treino especializado para equilíbrio e fortalecimento dos membros mais formados no meu esporte, e perdi 17kg. Mudei totalmente minha rotina. A cobrança após a primeira vitória no Brasileiro foi gigante. Além disso, tenho dois treinadores Luiz Sgarbi e Ricardo Alencar. Eles me treinam no mínimo duas vezes por semana e faço três horas por treino.

Assim como outros atletas, Julia esbarra em um obstáculo muito grande: a falta de apoio. Ela arcava com os gastos praticamente sozinha, até que conseguiu a ajuda das sócias do escritório de advocacia. A atleta lamenta o descaso.

– Participo de um esporte muito caro, gasto aproximadamente R$ 2 mil por mês com munição e material para manutenção do equipamento. Elas (as armas) são caras e tudo era custeado por mim e pelo meu escritório, minhas sócias me patrocinam. Até para conseguir o óculos específico de tiro não tínhamos ótica especializada em Alagoas. Mas, graças a Deus, tenho patrocinador. Tem uma ótica que me patrocina. Ela é responsável pelo meu óculos, manutenção e trocas de lente. Tenho miopia e astigmatismo, 5 graus, então sofro. Muitos estados e prefeituras ajudam os seus atletas, incentivam o esporte, não é nosso caso. Até o reconhecimento é zero. Um exemplo é o Distrito Federal, que arcou com o transporte de todos seus atletas e seus equipamentos. Imagina pagar mais de 30kg de excesso de bagagem?!

Assim, Julia fica impossibilitada de participar de outras categorias da modalidade, e até mesmo de poder competir nas Olimpíadas.

– Ano passado só fiz custon porque não tinha arma para competir sporter. O Brasileiro e Copa Brasil classificam para o Sul-americano e o Mundial. Para competirmos nas Olimpíadas preciso de equipamentos que ainda não possuo, infelizmente o investimento precisa ser grande e no momento não posso arcar.

Desistir? Jamais

Apesar de tudo, Julia continua firme e forte no esporte e sempre incentiva outras meninas a praticarem. Para ela, não importa se o esporte é de “homem”, as mulheres devem buscar cada vez mais espaço no que gostam de fazer.

– Hoje minha família conhece minha intimidade com a arma, sabe que sei utilizá-la, manuseá-la… Que são seguras. Quando minha sobrinha completar sete anos vou começar a ensinar (risos). Sempre incentivo outras meninas. Decidimos ingressar no universo masculino, trabalhar fora de casa e continuar com a obrigação de ser "dona de casa", responsável pelo lar, marido e filhos. Hoje dividimos contas. O tiro esportivo é um esporte fantástico, a adrenalina é show. Desenvolve a concentração, acalma. Apesar da falta de apoio, patrocínio e incentivo, é tudo mágico. Vale cada centavo. E desmistificar o esporte é massa. Normalmente os mais preconceituosos são os que têm medo que ganhemos dele, e é isso acontece sempre (risos) - finalizou.  

por globoesporte.com/Marceió
foto Julia Nunes - Arquivos